Sua obscuridade e a minha

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Do reino da aparência

      Como vivemos certamente na sociedade mais superficial da história, a sociedade moderna, a aparência é rainha indiscutível do critério. Aparência pessoal, aparência social e também a aparência das opções ideológicas e éticas. Nos acostumamos a que o aspecto exterior seja suficiente para julgar a diversidade do universo, como se a realidade fosse um gigantesco expositor de supermercado. Temos pressa e não podemos deter-nos muito na análise das coisas; a profundidade requer tanto tempo... Uns escassos sinais exteriores de identidade, na maioria das vezes somente referências estereotipadas, servem ao homem moderno para rapidamente identificar e classificar os múltiplos encontros da vida. Antes ocultavam dos servos as chaves do mundo, os mantinham isolados. Hoje os convencem de que não têm tempo para debruçarem-se sobre elas, os mantêm ocupados.

      "Sinistro" é então, na nossa modernidade, também uma mera aparência, um rótulo. Ao menos no início. Qualquer pessoa pode alcunhar a si mesma como "sinistra", e na maioria dos casos sentirá que sua autenticidade dependerá de adotar a aparência correta. Talvez vestindo-se de determinada maneira, talvez escutando um certo tipo de música, talvez até mesmo frequentando determinados ambientes. E se trocarmos o rótulo "sinistro" por "satanista" ou "satânico", a coisa não mudaria fundamentalmente.

Entediado no aquelarre

      Geralmente me custa socializar em ambientes "satânicos" ou "sinistros", porque costumo somente encontrar pessoas que estão em desacordo com a minha visão de mundo. Embora me pareça cativante o Baphomet que transportam em torno de seus pescoços, ou que falem sobre LaVey como se tivessem jantado com ele na noite anterior. É mais triste a decepção do que a solidão, então devo dizer que não é um prazer absoluto os conhecer. Também encontro pessoas interessantes nesses círculos, mas me parecem demasiado poucas. Os mundos "sinistros" e "satânicos" não selecionam por si mesmos um tipo específico de indivíduos, e sim estão completamente abertos para pessoas atraídas pelas mais inimagináveis razões a ​​esta opção do mercado de aparências.

      Me perguntava o que incomodamente me sussurrava com um chiado nestes encontros com aqueles cuja aparência indicaria que são meus iguais. Depois de muito meditar — sem a pressa moderna — cheguei à seguinte conclusão: Em muitos "sinistros" vejo que seguem reinando ufanos os dois mais contumazes inimigos que existem até agora: o Ego e Deus.

Os egos "sinistros"

      Há uma grande confusão nos ambientes do caminho da mão esquerda, e do satanismo moderno em especial, em caracterizar qual é a dimensão pessoal que confrontaria a moral de rebanho. O ego não é a identidade profunda e autêntica de cada pessoa, e sim uma mera construção social, uma instável auto-imagem pública, baseada mais uma vez nas aparências e abarrotada de modismos sobre o êxito pessoal de determinada época e lugar. A autêntica identidade não para de mudar, enquanto o ego necessita crer-se firme e imutável, eternamente igual. Por isto se dão tão mal.

      Na identidade profunda habita o que Crowley chamava de a Verdadeira Vontade, essa força que, quando desperta, consegue pôr "a inércia do universo a seu favor". Porém a vontade superficial do ego é simples hedonismo, complacência na posse circunstancial de coisas, dependência dos cânones de prestígio de uma determinada sociedade, mera impaciência pela satisfação dos caprichos do momento.

      Tenho visto demasiados satanistas não venerando-se, e sim venerando seu ego. Para eles o satanismo é somente uma cômoda ideologia da desculpabilização, uma desculpa que lhes livra da penitência pelos pecados aprendidos. Apenas um álibi para se entregarem sem arrependimentos a suas perversões pequeno-burguesas. O satanismo lhes serve para não ter que respeitar, para não ter que perguntar antes, para poder aproveitar, confundindo a grosseria com uma ética liberta dos grilhões morais. Por fim, o satanista do ego, como o tio que há em todas as famílias, é um vagabundo.

      E, claro, um arrogante. Nos círculos com as aparências apropriadas, um "mestre". Creio firmemente que há mais mestres nos ambientes sinistros que em toda a Federação Internacional de Sindicatos de Ensino. Os discordianos começam pelo grau de padre, parece que os "sinistros" pelo de mestre. Quantas caretas de condescendência ante os "não iniciados", quanto clichê em "tudo isto é muito mais complicado", quanta displicência dos profundos "segredos" que não se pode revelar. E quanta ameaça velada de terríveis feitiços, sempre destrutivos como convém a um ego inseguro que suspeita de risos por todas as partes. Enfim, quanto fanfarrão de negro.

Os deuses "sinistros"

      Creio que o laço mais forte que me une a Satã, o que propiciou nossa paixão à primeira vista, é o ódio em comum a todo tipo de versões e variantes da ideia de Deus. Não importa que no altar haja somente um (deus), ou vários em fila, ou até mesmo um dentro de outro como nas bonecas russas. Que sejam representados por símbolos geométricos, figuras humanas, animais, ou todos juntos. "Deuses" quer dizer vontades acima da sua, leis que não podem ser discutidas, limites que não se pode explorar. Esse invisível Deus que nunca responde também representa uma imagem do ser humano e de sua vida como algo miserável, minúsculo, sempre necessitado. Toda crença em deuses necessita de auto-humilhação.

      Converter Satã — Set, Lilith, Lúcifer, dependendo das preferências "sinistras" — em um deus é seguir crendo em Deus. Livrar-se do cristianismo e de seu lamentável deus Jesusito mediante o método de abraçar um novo deus, ainda que superinfernal, é fazer como as pessoas que na primeira metade do século XX se desengancharam da morfina com a heroína. Os satanistas ocidentais que "adoram a Satã" estão reeditando assim, ainda que não admitam, o único deus que realmente conhecem, a figura de Deus por excelência que lhes foi ensinado desde pequenos: o Deus judaico-cristão. Por isto alguns inclusive chamam Satã de "pai", utilizando literalmente um dos atributos divinos centrais da Bíblia. De onde vem esta preferência por caracterizar a relação com o Demônio como pai-filho? Ainda que o pai neste caso possa ser imaginado como sendo mais divertido, um autêntico papai-diabo, a eleição tem a marca inconfundível do mito autoritário bíblico, que imagina uma humanidade infantilizada constantemente admoestada por seu progenitor. Estou seguro de que um satanista educado no budismo não sentirá a necessidade de chamar o Demônio de "pai".

      Assim minha insatisfação com uma grande quantidade de "sinistros" e "satânicos" se deu porque eu buscava a companhia de espíritos audaciosos e rebeldes, para trocar experiências de lutas, e me deparei com arrogantes rezando.

© Miguel AlgOl

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